Entrevista
Entrevista com Marcelo Gleiser.
Marcelo Gleiser é graduado em Física pela PUC do Rio de Janeiro (1981), mestrado em Física pela UFRJ (1982) e doutorado em Física pelo King's College London (1986). Atualmente ocupa a cátedra Appleton Professor of Natural Philosophy em Dartmouth College, com vínculo de Professor Pleno em Física e Astronomia. Possui experiência na área de Física, com ênfase em cosmologia, gravitação, métodos não-perturbativos e formação de estruturas complexas em teorias de campo, origem da vida e astrobiologia.
Livros
PREFÁCIO
Recebi o convite para escrever o prefácio do livro de um orientando de doutorado em educação. Não é um livro com o tradicional resultado de pesquisa de doutorado, mas sim um livro de poemas. Ao receber este convite, fui tomada pela surpreendente pausa na respiração, pela suspensão dos sentidos em qualquer estado que nos encontremos, ocasionada toda vez que a gente se depara com a différence, foi assim que me senti.
Na minha trajetória profissional, há mais de três décadas, nunca antes havia recebido um convite tão encantador, que me tirou do lugar comum de professora pesquisadora, que trabalha com a formação de professores/as e pesquisadores/as na graduação e na pós-graduação. O convite do meu orientando requereu a superação de habilidades e competências já construídas academicamente, exigindo um agregar de sensibilidade estética.
O título do livro é “Preto Não é Cor; é Mundo”, escrito por Claudinei Caetano, licenciado em Filosofia, mestre em Cultura Contemporânea, doutorando em Educação, professor da rede pública de ensino do estado de Mato Grosso. A produção dos poemas se inscreve historicamente no processo de produção de dados de sua pesquisa de doutorado, em diálogo coletivo junto a estudantes do ensino médio em escola pública, naquele momento em que a pesquisa faz o pesquisador e os entrevistados participarem da produção do conhecimento, em uma lógica que, no processo de pesquisar, essa ação transforma os sujeitos que pesquisam, o que é reconhecido somente pelas abordagens metodológicas qualitativas.
A escrita de um livro de poemas não estava prevista no projeto de pesquisa, tampouco em decisões metodológicas deste projeto, configurando-se em manifestação de uma maturidade acadêmica que reverbera em acuidade estética, criação, produção cultural e exercício de liberdade. Eu sei que existem, mas não tenho conhecimento sobre métricas de poemas, estilos ou classificações, tampouco tenho pretensões de estudar essas métricas ou escrever poemas. Assim, falarei somente do que sinto ao me deparar com poemas, essa sensação de leveza que nos faz transcender espaços, tempos e estados de espírito, que produzem poesia, um modo de olhar o mundo e de significar a vida. É dela que me atreverei a falar ao escrever este prefácio após a leitura dos poemas do livro “Preto Não é Cor; é Mundo”. Desde o título até seus últimos versos, a poesia gerada por todos os poemas publicados neste livro reverbera uma cosmologia decolonial, enunciando um saber/ser/poder do corpo de um homem preto em sua relação com o mundo. Uma tríade também formada por indignar-se, amar e lutar.
A cosmologia decolonial está nos versos escritos a partir de si, um si coletivo desde a ancestralidade, enunciada para e com o mundo, um “existir sem precisar se explicar”: pretitude. O epicentro desta cosmologia é o corpo preto, que só existe em relação com o mundo e com a ancestralidade. Esse corpo tem protagonismo, memória, gana, afirmação, esperança, futuro, enunciação, presença, coletividade (quilombo), é “...Tambor que ressoa... No fundo da alma... Ecoa na pele...”. Esse corpo preto é forjado e radicado na terra, no fogo, na ancestralidade. A poesia ressoa como uma ode à pele, às mãos, ao cabelo: “Corpo preto, pele preta, cabelo negro, punho cerrado, alma que manifesta religiosidade através da Umbanda, dos Orixás... “No olhar, no gesto, na palavra dita...” Existe um movimento crescente nos poemas. Da ancestralidade, emerge a consciência coletiva de sofrimento, de resistência, de lutas e de vitórias. Uma ancestralidade que se encontra ligada visceral e radicalmente à terra, ao fogo, ao chão, amalgamando a coragem e a força.
Na sequência do movimento dos poemas, o corpo preto é colocado em ação, em ritual de pluralidade envolvendo cantar, dançar, orar e lutar. Luta orientada por uma coletividade, por um quilombo; pelo destaque da religiosidade, evocando os Orixás; pela produção cultural de danças, cantos, expressões plurais; e por lideranças representativas reconhecidas historicamente e também pelas anônimas, que conduziram à não aceitação da dor e do lugar subalterno (revolta), produzindo levantes, confrontos e vitórias. Todo o movimento dos poemas se encontra orientado por princípios: a vida, a honradez, o orgulho de sua coletividade, a esperança e a liberdade. Onde chega todo o movimento poético? Chega à pretitude, nunca pronta, cotidianamente recomeçada por meio de corpos pretos, por sua força colocada em ação, em diversos tempos e lugares, por enunciações e expressões. Os poemas publicados neste livro são atos de identidade, envolvendo estética, cosmologia e política, onde “resistir é existir inteiro” e a liberdade não se reduz a um estado físico, a um habitar determinado espaço geográfico, mas a uma “Alforria que a alma descreve.”
Convido a todes a vivenciarem a poesia produzida nestas trilhas poéticas da cosmologia decolonial enunciada por Claudinei Caetano em “Preto Não é Cor; é Mundo”.
Ozerina Victor de Oliveira
Pesquisa